VISUALIZAÇÕES

sábado, 29 de dezembro de 2007

... para não suicidar

MARIANA
Por Nívia Maria Vasconcellos

Desapareceu Mariana... até desaparecer a própria lembrança de Mariana. E os Domingos sem ela, eram Domingos simplesmente. A sua ausência, em princípio, não ocasionara estranheza, viria no próximo com certeza. Depois, fez suscitar algumas perguntas em vão: Mariana nunca mais veio, cadê Mariana? Indagação vaga para ninguém, que ninguém respondia. Ela sumiu como o primeiro dia de sua visita, de repente. O seu sumiço a fez parecer parte de um passado distante, tão alheio: alguém de quem se ouviu falar, e não alguém com quem se conviveu. Lenda, invenção, história contada para entreter crianças, ilusão coletiva. Não se tinha nenhuma comprovação de suas inspeções, uma foto, uma fita... a falta de provas tornava a sua existência apócrifa e colaborava com o mistério do seu aparecimento abrupto e desaparecimento repentino.

A tarde mal dava seus últimos suspiros, e lá estava Mariana, ao portão, baixinha, encolhida, mas presente, com gestos de quem quer entrar. Dona Mariana chegou!!!! Abre o portão para D. Mariana!!!!!!!! Essa responsabilidade sempre era delegada ao outro: Abre você!!! Abre você!!! Não parecia constrangida por causa disso, insistia no seu pedido silencioso para entrar até que tinha o seu dominical desejo cumprido. Não era apenas crueldade daqueles que hesitavam em abrir o portão, era preguiça mesmo, vontade de não levantar, de não possuir sua vida invadida por uma estranha para quem eles não eram estranhos. Espantosa essa sensação de ser conhecido sem conhecer...

Fazia, sem querer, parte desse estranhamento. Eu era um dos que não levantavam. Minha mãe, a salvadora da família, disposta e receptiva, encarregada de esconder nossa inércia, saía da cozinha para fazer entrar aquela que tinha por único desejo ou promessa ou sina ou fado ou destino mesmo... observar a nossa casa, introduzir-se nela, investigar-lhe cada aposento, espreitar cada uma de nossas ações e, é claro, participar da nossa dominical janta com a televisão gritando ao fundo. Não que ela só fosse a nossa casa, ela visitava outras, meus vizinhos eram também constantemente visitados, esses Domingos, para ela, eram todos uma eterna peregrinação.

Quando nasci, as visitas de D. Mariana já existiam. Quando dei por mim e percebi que aquela imagem que o espelho refletia quando eu o olhava era eu, quando tive consciência de mim, antes! já tinha tido consciência daquela que se fazia presente no seio da minha família. No momento em que já podia andar e entender, fiz questão de não visitá-la, mas de lhe ver a casa. Era próxima a minha; pequenina e encolhida como a dona. Meio abandonada como a dona. Parecia vazia e deteriorada, a casa, não a dona. Mariana apresentava vida nos seus passos calmos e constantes, em suas mãos meio trêmulas e seguras. Seu olhar incompleto repousava sobre cada um. Seu único olho lhe valia, era astuto, esperto, sempre atento, bastava-lhe. Isso lhe oferecia mais mistério e impunha sobre mim uma certa autoridade, procurava nunca encará-la, parecia com um correr risco de não sei o quê. Sempre a olhava de canto... (sempre a percebia a olhar-me de frente). Não lhe tinha simpatia, tinha-lhe respeito. Não sabia se ela gostava de mim, não entenderia o seu gostar. E as visitas se sucediam numa reincidente incógnita. Complicada essa coisa de observar o outro.

De alguma forma, o seu hábito se transformou em nosso hábito que, como todo costume ou vício, prescinde quaisquer explicações. Assim, Domingos sobrevinham e a minha infância era ultrapassada pela inocência que se corrompia e Dona Mariana lá... presenciando todo o meu viver e o dos que me eram próximos como alguém que sabe e não diz... conhece, mas se cala. Não parou por aí, contemplou também a minha adolescência intransigente. Era conhecedora dos caminhos pelos quais já havia passado e dos que pretendia atravessar. Incômodo isso. In-cô-mo-do! Nunca me acostumara... consentia sem concordar... não podia lutar contra a sua mania, e minha família, sem perceber, já fazia parte dela. Distanciava-me cada vez mais de minha casa e Mariana, não! Sempre, ao chegar, olha Dona Mariana ao portão, na rede, à porta, à janela, à... Ela é que agora abria o portão para mim, mas... sem se opor... e iniciava o interrogatório. Maldita educação que me fazia respondê-la sem proferir-lhe nenhuma ofensa ou a maior delas: calar-me. E as semanas continuavam a se passar... pensava: quando conheci Dona Mariana ela já era do mesmo jeito que naquele momento a via. Pensava, angustiada, que ela sempre fora assim: uma senhora idosa... mas... por que eu não continuei assim... uma criança...??? Refletir dói. Essa reflexão me era terrível. Inexplicável. Perscrutá-la era uma inútil ação. Eu inútil diante disso tudo...

... ... ... Dona Mariana morreu. Há mais de um ano. A voz que proferiu tais palavras também incitou as lembranças que estavam sob a custódia do nosso esquecimento de Mariana. O seu sumiço já havia sido para nós uma morte. Mas sabê-la através das certezas dos fatos foi como um atestado de óbito ( existe para comprovar o que já é sabido ). Contudo, não trouxe nenhum abalo à família que, de tanto recebê-la, não averiguou sua desaparição. Os Domingos com a ausência de Mariana aconteciam, e essa ausência, do mesmo modo que a sua vinda, transformou-se em hábito. Sua carne não mais existia e em poucas vezes alguém ameaçava perguntar por ela, respostas não havia. Seus olhos e ouvidos não mais existiam, e pensávamos que estava a vigiar outras casas. Sua voz não mais interrogava, e continuávamos a viver, não só os Domingos, mas todos os dias da semana. Abandonamo-la muito antes de ela ter nos abandonado e a notícia do seu falecimento revelou a maldade daqueles dos quais eu fazia parte... ... ... (VASCONCELLOS, Nívia Maria. ... para não suicidar. Feira de Santana: Littera, 2006)
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Quadro"... para não suicidar" de Gabriel Ferreira

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