VISUALIZAÇÕES

sexta-feira, 26 de março de 2010

ANIVERSÁRIO







Álvaro de Campos


No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais       copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...



Pintura de Pollock

domingo, 14 de março de 2010

EM HOMENAGEM AO DIA DA POESIA




POEMAS AOS HOMENS DE NOSSO TEMPO




Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo


Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto


Não cabe no meu canto.


HILDA HILST

domingo, 7 de março de 2010

A indefinibilidade da Arte ou a Arte sempre passa a perna


Ferreira Gullar, conhecido poeta maranhense, em seu também famoso poema Traduzir-se, pergunta-nos se: “traduzir uma parte na outra parte [...] será arte?”. Pressupomos que ele, enquanto artista, soubesse a resposta, no entanto, em seus versos, ele repassa ao seu leitor essa indagação que, há milênios, jamais conseguiu ser respondida. Muitos foram os que se incumbiram da responsabilidade de definir o que é Arte, nenhum deles, entretanto, logrou um sucesso absoluto diante dessa empresa.

Com certeza, a Arte não é tão somente substantivo feminino. À procura de uma resposta plausível para sua existência e função, vários pensadores como Platão, Aristóteles, Vico, Freud, Marx e muitos artistas como Hoelderlin, Shelley, Fernando Pessoa, em diferentes épocas e lugares, dedicaram seu tempo e inteligência a essa investigação infindável. Mesmo empenhados nessa empreitada, não conseguiram chegar a definições irrefutáveis: não há uma postura que seja consensual. Todas as tentativas, de alguma forma, mostraram-se lacunares, imprecisas e representaram mais um reflexo dos pensamentos preponderantes em uma determinada época ou uma refutação deles do que necessariamente uma definição que solucionasse esse problema estético.

Enquanto para Platão a reminiscência se apresenta como processo criador da Arte, a qual deve ter uma finalidade didática e é inferior até mesmo ao artesanato por ser apenas uma imitação de segundo grau do Mundo Ideal; para Aristóteles, autor da Poética, a Arte tem um poder criador de formas e uma finalidade catártica. Vale lembrar que Aristóteles estudou na Academia de Platão e chegou a ser seu discípulo. Se entre filósofos tão próximos entre si há uma divergência de ideias sobre a Arte, entre outros estudiosos do assunto os desacordos só se intensificam.

Na concepção cristã, a Arte é uma imitação da atividade divina, como bem afiança Santo Agostinho. Vico concebe a Arte como expressão, negando o conceito da Arte enquanto mimese. Na visão kantiana, ela é fruto do sentimento e expressa o universal no particular. Já Marx, em seu Materialismo Histórico, a vê como parte da superestrutura, determinada pelas forças e meios de produção, ou seja, simples reflexo da infraestrutura. Numa visão psicanalítica, Freud afirma ser a Arte a sublimação do instinto sexual. E vários são os que, influenciados por ideias de Benedetto Croce, acreditam ser a Arte autônoma. Não subjugada à filosofia ou à moral, ela seria produto da impressão dos artistas.

Seja como uma técnica ou como uma manifestação de ordem estética, a Arte acompanha a sociedade humana e se modifica tanto quanto os conceitos que a perseguem. Firmar uma definição sobre ela e impô-la como verdade absoluta a depreciaria e faria com que ela se quedasse estanque sem acompanhar a sua própria dinamicidade. O caráter mágico das pinturas rupestres, didático dos templos greco-romanos, catártico das tragédias de Sófocles, religioso das esculturas de Aleijadinho, sublimador de pulsões sexuais dos quadros de Jheronymus Bosch, expressivo do abstratismo de Pollock ratificam ao mesmo tempo em que contestam várias das concepções aqui elencadas. 

O que é inegável é que o problema estético quanto mais é investigado mais suscita indagações. Uma delas é justamente sobre a real importância de resolvê-lo. O homem se reinventa e reinventa a própria Arte que elabora. Por mais que se vá a seu encalço, ela nos escapa e não se deixa sintetizar, mostrando-se tão rica e plural quanto aquele que a concebe. Dessa forma, como disse Fernando Pessoa: “A busca é sempre vã”. Mas, apesar de vã, essa busca se faz tão interessante e produtiva para o desenvolvimento do homem quanto à própria Arte.

* Foto de Jessé de Almeida Primo: Nívia Maria Vasconcellos na Livraria Cultura em SP.